21/08/2008



Parte 2


Um quarto é o território delimitado pelo animal Homem. Ali todas as posses, todas as manias, todos os segredos são armazenados. Dentro do quarto está toda a intimidade, toda a solidão de um ser. Mesmo quando se divide um quarto com outra pessoa, o quarto se torna subdividido, com fronteiras bem delimitadas... Essas fronteiras saíram do quarto, o Homem as expandiu por todos os lados. Nas ruas, nas praças, nos postes, nos estados, nas cores, no mundo, no universo, nas estrelas... O Homem só não urina no que é seu porque isso não seria civilizado. Como também não é civilizado ultrapassar uma linha imaginária criada com parâmetros justos...

Lembro-me de que, quando eu era uma criança, convivia com crianças e adultos, mas olhava com o olhar de criança. Cresci e continuo convivendo com crianças e adultos, mas não sei onde está aquele olhar que antes olhava com um brilho que não encontro mais. Não sei onde está o brilho nos olhares dos outros, não sei onde está o brilho do meu olhar, não sei onde deixei esse filtro que me fazia acreditar num mundo realmente melhor. Não sei onde deixei minha esperança, mas tenho certeza de que a perdi no mesmo instante em que mudei. Mas juro que não percebi como essa pessoa que me tornei hoje apareceu! Eu conheço todas as minhas fases, mas não sei se os olhares de antes me reconhecem.

Não quero achar culpados.

Adoro olhar para a parede em frente quando deito na minha cama, pois lá está ele, a minha inspiração em dias frios, o quadro de Edvard Munch – O Grito. Lógico que não é o original. É apenas um impresso que comprei numa loja que vende posters. Especialmente hoje, ao olhar para ele, algo me incomodou, não sei exatamente o que, mas sei que não são as pessoas. Talvez seja eu mesmo, não com minhas escolhas, mas sim com a maneira como eu mesmo não consigo cumpri-las como gostaria. Não é a decepção alheia que me deixa desanimado e sim minha própria decepção.

Gostaria de tirar tudo isso de dentro, todo o meu eu de dentro e explodi-lo para fora, num ato de coragem. Mover-me dessa cama num grito alucinante de encontro, parar de pensar e agir... mudar!

Como mudar? Ra! Estou aqui parado ainda.

Essa cama esfriou de repente. Em algum lugar nesse armário está o edredom que minha avó me deu. Aquele edredom retalhado que ganhei de aniversário. O interessante é que ele ainda parece novo... Bem diferente desses produtos descartáveis de hoje em dia.

Que raiva que me dá. Você paga um absurdo para ter um “lançamento” e pronto, daqui a alguns meses ou no máximo em um ano estraga, ou pior, as lojas têm a cara de pau de colocar em liquidação, ou seja, o mesmo produto que você comprou está 10X mais barato. Não entendo como sou idiota de comprar “lançamentos”. Não deveriam chamar de “lançamento”, mas sim de “lançalucro” ou “paraotário”. Bom, vou pegar o edredom antes que eu congele.

Hum! Isso sim é aconchego. Minha cama quentinha, e eu aqui, no casulo feito pela vovó. Chega até a ser engraçado. Lembro-me de quando ela estava costurando, dedicou-se por meses para que tudo ficasse perfeito. Isso sim é “lançamento” exclusivo. Diria que uma linha de amor. Nunca parei para pensar quanto amor existe neste cobertor.

O amor pode estar em qualquer lugar, ser de todos os formatos e ter mil maneiras de ser transmitido, basta receber. Doar. Receber... Estou quente, obrigado!
Estou cansado nesse momento, mas quente! Sinto-me acolhido no meio do abismo gelado. Como se por instantes eu tivesse caído no meio dos sentimentos e feito dos retalhos uma pilha de confusão. Até que alguém pegou cada trapo e uniu. Deu sentido e utilidade para cada pedaço. Envolver-se. Envolver-me. Envolver-te. Envolvida em retalhos de mim...

Olhos fechados, janela fechada. Quarto abafado. O ambiente está seco e sem luz. Só a fresta de luminosidade que invade o chão pelo vão da porta.

Espero dormir, mas com muito cuidado para não me virar demais. Posso cair. (...)



Até amanhã...


Fabiane Rivero Kalil


4 comentários:

Tata disse...

ter medo de cair faz parte da vida, mas cada queda um aprendizado. Melhor que ficar paralisada e só dormir de um lado.. olhando munch gritando pra vc se virar..
Cair com edredon da vovó não deve machucar tanto. Talvez valha a pena

Pequeno Will disse...

É incrível a forma que você descreveu o 'lançamento' gostei muito. Muito bom!!! Vou aguardar a terceira parte e o restante, por algum motivo me identifiquei com os textos...

ps: não consegui parar de pensar na minha vovó, naquelas tardes sem fim tomando café da tarde na fazenda... hehehehe

Anônimo disse...

amei o trecho do "lançamento" da vó!!
Fabi, eu sempre achei q vc escrevia muito bem, mas são impressiontantes!!
beijos!

Anônimo disse...

Meu deus rsrsrsrs que medo é esse, de cair....até eu to começando a ficar....

nesta sala gelada, me senti até quentinha de ler esta segunda parte....da angustiada primeira parte para o aconchego da segunda....foi muito boa essa transição....foi confortante!

vai que vai!
bjs